domingo, 25 de janeiro de 2015

A UNIVERSIDADE QUE NÃO PENSA

A UNIVERSIDADE QUE NÃO PENSA
Flávio Brayner
Professor Titular da UFPE

Quando vemos ou ouvimos o discurso estridente e obsessivo ao nosso redor, a respeito de ranqueamento, inovação, competitividade, produtividade, gestão, governança, produção, negócios..., denotando e conotando, com uma linguagem nova, a construção de uma outra realidade institucional (mudam-se as palavras para que o sentido que atribuímos às coisas possam também mudar) é porque algo de importante aconteceu e que não se trata simplesmente de “adequar a universidade às exigências dos novos tempos”: trata-se de criar este “novo tempo” e apresentá-lo, finalmente, como resultado de uma evolução natural. Há, pois, uma revolução em curso: a que instalará a distopia do homem-recurso dispensável, a que eliminará do cenário universitário a resistência crítica, uma vez que ciência “objetiva e neutra” não é objeto de debate público! O que está em jogo é a simples eliminação do espaço público-decisório.
O que se esconde (se é que a ideia de que algo se esconde “por trás da realidade” faz algum sentido) nesta libido instrumentalae de uma instituição que gostaria de ser igual a Harvard, ou uma das 25 melhores do mundo até 2027?
Receio que o que se “esconde” aqui é algo como o fazer do mundo algo mensurável, quantificável e ordenado segundo uma mathesis universalis (uma ciência da ordem universal): este foi o delírio utópico da ciência moderna, esta ciência que “descobriu” que Deus escreveu o universo em linguagem matemática (Galileu)! Imaginar que todas as coisas podem ser medidas e quantificadas, e não digo apenas as ordens discretas, mas também o amor, a justiça, o ódio, a alegria, a amizade, o desejo, a revolta, a indignação, a dúvida, o pensamento, o julgamento, o querer e as emoções em geral (e as tentativas atuais de mensurar as chamadas “Competências não cognitivas” –“socioemocionais”- já apontam neste sentido), esta é a “Solução Final” do horizonte tecnocrático. Na nossa Universidade, enquanto os instrumentos para medir essas emoções não chegam, nos satisfazemos – por enquanto- em medir a ...”produtividade acadêmica” (número de patentes, de artigos, de recursos captados, de alunos virtuais, de professores deprimidos, de capítulos escritos, de citações, etc.).
Mas, se o pensar é exatamente aquilo que interrompe o continuum da vida, que nos retira da ordem imediata do mundo, dos automatismos ideológicos das respostas que antecedem às questões, do encadeamento causa-efeito..., para suspender, por um instante, nossas certezas habituais e, com isto, permitir o exercício do julgamento, só possível na presença partilhada ou confrontada com a pluralidade de outros pontos de vista, então, uma Universidade da mensuração e do ranqueamento é uma Universidade que não pensa mais.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A UNIVERSIDADE QUE NÃO QUEREMOS. REFLEXÕES SOBRE UMA DERROTA DO PENSAMENTO

A UNIVERSIDADE QUE NÃO QUEREMOS. REFLEXÕES SOBRE UMA DERROTA DO PENSAMENTO
Por Flávio Brayner
Professor Titular da UFPE

Flávio Brayner

Fui formado no interior de uma ideia de Universidade que vejo, neste momento, sofrer um processo de grande transformação e caminhando numa direção que, pessoalmente, não tenho interesse em compartilhar. E mesmo sabendo que minha forma de resistência a estes “novos tempos” é insignificante e até mesmo irrisória –a única “arma” de que disponho é minha palavra- gostaria de deixar registrado o meu protesto contra as formas insidiosas ou abertas de construção de uma nova universidade em que nela antevejo o laboratório institucional onde se processa uma silenciosa experiência: a da derrocada do pensamento, a da transformação do homem em uma entidade supérflua e, finalmente, a construção da distopia tecnocrática. 

 A universidade do “como fazer”
Há sinais, neste meu presente universitário, que parecem apontar para futuros que reputo indesejáveis. E o mais indesejável deles –para mim- é a transformação da universidade de um lugar do “como pensar” em um outro, o do “como fazer”.

Retomo, rapidamente, o velho tema weberiano da “razão instrumental” e insisto no fato mais ou menos evidente de que nossa instituição, ao mesmo tempo em que define “fins”, “valores” e “missões”, oferecendo ao incauto um verniz de compromisso social sem convicção e que me cheira, às vezes, como um deboche ao “humanismo”, esses mesmos “fins e valores” (universidade crítica, democrática, pública, de qualidade socialmente referenciada e outros qualificativos de efeito mais retórico que, efetivo. Verdadeiro, para usar a expressão latina, “captatio benevolenciae”), no fundo, tais “fins e valores” são incompatíveis com o escopo geral e profundo onde se assenta as crenças e convicções de boa parte de seus agentes. Não se trata de uma universidade “maquiavélica” (o termo é inadequado, na medida em que Maquiavel nunca foi maquiavélico!), em que os fins justificariam os meios. O problema é mais grave, os meios substituem os fins e aqueles fins de aparência ética elevada são formulados apenas para esconder os meios! De qualquer forma, é sobre a dominação hegemônica da “técnica” e orientada por exigências mercadológicas que está sendo reconstruída a instituição universitária. É por isto que, talvez, aquela velha noção de ‘razão instrumental’ aqui não funcione mais: não se trata de adequar os meios aos fins – dispensando a avaliação moral destes fins tecnicamente alcançáveis: sabe-se, de antemão, que aqueles fins são irrelevantes, pronunciados e anunciados apenas como uma espécie de concessão retórica, mas aqueles agentes estão conscientes de que “crítica”, “democracia” ou “público” não farão mais parte do léxico deste mundo novo que a universidade ajudará a nascer.

Isto pode parecer “conservador”, na medida em que resistir ao “avanço” ou ao “progresso” técnico seria uma atitude reacionária, daquelas que evitam o caminhar da humanidade para futuros radiosos e, afinal, inevitáveis. Aceito, sem grande constrangimento, a acusação de “conservador”, desde que me informem antes em nome de qual “progressivismo” eu estou sendo acusado!

Já estamos, para início de conversa, num campo onde o escopo moral que porventura tenha nos orientado até aqui, aquele fundado numa determinada noção de dever, de desinteresse, de universalidade, de cuidado com o outro, perde seu efeito normativo e entram em cenas valores performáticos e estratégicos, voltados para o sucesso e os resultados em que, entre outras, os homens também são apenas meios (na verdade, “recursos”: recursos humanos!), ignorando os fins que não são mais determinados por nós mesmos (concepção antropológica), mas, pela própria técnica. É o próprio artefato técnico que, doravante, determinará e criará o ambiente em que se darão nossas relações com os outros, com nós mesmos e com o meio em que vivemos. A questão, pois, é simples de ser formulada: como é possível conciliar competitividade, performance, ranqueamento, empreendedorismo e resultados mensuráveis com “universidade solidária, consciente, crítica, democrática, pública e socialmente comprometida”? Receio que estejamos diante da quadratura do círculo! Ou, para não perder o humor, do casamento do pote de ferro com a panela de barro: na hora H, a competitividade bate e a solidariedade, coitada, apanha!


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Manifesto “UNIVERSIDADE PÚBLICA EM MOVIMENTO”

“UNIVERSIDADE PÚBLICA EM MOVIMENTO”

PRIMEIRO MANIFESTO

     A UFPE tem passado por momentos decisivos: debate sobre o novo Estatuto, o Planejamento Estratégico, a interiorização das unidades, entre outros. Tudo isso vai exigir de cada um(a) de nós - docentes, técnico-administrativos(as)  e estudantes - um agudo senso de avaliação sobre os caminhos que estamos tomando e sobre os quais precisamos ter a mais elevada clareza. Nossa universidade, apesar da aparência contrária, caminha na direção da anulação da participação pública, ao passo que vem inserindo algumas “soluções” de gestão que apontam para um projeto de universidade cada vez mais tecnocrático.

     Observemos que vem crescendo nas Bolsas de Valores a participação de grupos empresariais ligados à educação, sinalizando para o aprofundamento da lógica privada na educação, transbordando, sobretudo, para as instituições públicas. A própria EBSERH, (empresa pública de direito privado regida pela lei das Sociedades Anônimas) que objetiva controlar os hospitais universitários no país, inclusive o nosso Hospital das Clínicas, já está contribuindo para a destruição de nossa carreira de Regime Jurídico Único, tão importante para o caráter público de nossas instituições. Setores de grandes interesses econômicos atacam direitos, apropriam-se de projetos de pesquisa, ensino e extensão enquanto mercadorias de baixo custo, na saúde, na educação e também na previdência social, a exemplo do que ocorre hoje com os novos ingressantes no serviço público que não mais recebem a sua aposentadoria integral.

     Nas universidades, aprofunda-se o “produtivismo” acadêmico, com reflexos no adoecimento dos profissionais e na própria Ciência produzida. As decisões locais concentram-se em organismos e conselhos de representantes ainda sob a marca do período ditatorial, avessa à participação real da comunidade como um todo. A democracia, mesmo com todos os avanços, ainda engatinha na prática, com a ausência de espaços de participação e decisão coletivos na gestão universitária. Esse processo é reproduzido em escala nacional com as frequentes perdas de autonomia que sofre a Universidade em relação ao governo federal.

     O mito da “meritocracia” invade os critérios de avaliação de nossos ‘desempenhos’ concentrando conhecimento e poder nas mãos de poucos. A lógica da concorrência, da competição entre os pares, promove o ranqueamento, sintetizada na frase já bastante divulgada: “Queremos ser uma das 100 melhores Universidades do mundo em 2027”. Esse ranqueamento nos oferece como modelo as universidades situadas em contextos históricos e sociais muito distintos dos nossos, comparando instituições segundo critérios que desrespeitam os mais elementares princípios da educação, cotejando-as a partir de necessidades completamente diferentes.

     O “ambiente de negócios” coloniza o conjunto de nossas decisões e, para agravar esta situação, abandona-se a discussão sobre “que universidade queremos (princípio de idealidade) e qual universidade precisamos (princípio de realidade)”, ou se estes dois princípios podem ser solidarizados, e opta-se pela “universidade como um problema de gestão”, acrescentando às graves condições acima esboçadas, uma a mais, que aponta para um perigoso horizonte: o do fim do sentido republicano, democrático e social da instituição universitária e o avanço do interesse privado no espaço público.

     A Universidade que queremos alia os três pilares tradicionais do que ela faz: ensino, pesquisa e extensão, a outros elementos de sua constituição. Muitas experiências interessantes existentes na UFPE no campo da ciência, da arte, de ações pedagógicas e organizativas prenunciam uma universidade pública comprometida com a transformação da sociedade e com uma qualidade referenciada nas necessidades sociais. Poderíamos, felizmente, citá-las em um bom número. Para que esse processo se universalize necessitamos de uma profunda articulação dessas experiências, construindo canais de articulação e divulgando-os dentro da comunidade acadêmica e na sociedade, questionando as exigências externas e artificiais que levam o conjunto dos(as) docentes à exaustão e empobrecimento das nossas possibilidades científicas, formativas e de alcance social. Assim, além dos três pilares constitucionais, apontamos para alguns elementos fundantes: ser republicana, democrática e social.

REPUBLICANA. Aqui a universidade busca afastar-se de características aristocráticas e elitistas existentes na sua organização e em sua perspectiva formativa. Baseia sua construção na pluralidade de opiniões sobre os objetos que produz (saberes e conhecimentos) e que se tornam comuns (um bem comum, público: um saber que educa). Busca, assim, responder às necessidades existentes em seu entorno. Num país extremamente concentrador de renda, de direitos e de conhecimento, a universidade deve ser um contraponto privilegiado na defesa da socialização de sua produção, de sua formação. Ser republicana na busca do mais profundo diálogo e respeito aos movimentos da sociedade civil, começando com aqueles internos à universidade, dos(as) docentes, técnico-administrativos(as) e estudantes, como também de seu entorno. As ciências, as artes, os conhecimentos e as tecnologias produzidas na universidade devem estar casados com nossa sociedade nordestina, pernambucana, respondendo a essas necessidades reais imediatas e mediatas de uma sociedade mais justa. Só a partir desse lugar social é que poderemos pensar em ser protagonistas de um processo que vai além da própria UFPE.

DEMOCRÁTICA. As experiências latino-americanas na resistência às ditaduras forjaram nas universidades da região uma especificidade estratégica: de buscar constituir-se em entidades democráticas e formar para a democracia. Num contexto de criminalização dos movimentos sociais, a democracia deve ser um elemento fundante de nossa universidade. Esse processo se dá na forma de seu acesso, permanência  dos(as) estudantes e seu corpo de servidores(as), nos organismos de gestão, na sua transparência à sociedade e em tudo que ela produz.

     No plano interno da UFPE, defendemos a construção de espaços reais e concretos de discussão e deliberação com todos os segmentos da universidade sobre temas que afetam o cotidiano da comunidade acadêmica: condições de trabalho, política de assistência estudantil, EBSERH, carga horária dos(as) técnico-administrativos(as),      Assim, o locus do poder deve ser ampliado, estendendo a prática e a sensibilidade democrática para o conjunto dos outros espaços acadêmicos e escolares, contribuindo na formação de subjetividades aptas a tratar com o espaço público e com a diversidade de opiniões.

SOCIAL: Isto significa que ela não existe exclusivamente para nós,professores(as), técnico-administrativos(as) ou estudantes. Muito menos para ser comparada com outras instituições. Ela existe para responder às demandas sociais da maioria da população e não para subordinar a universidade ao mercado. Trata-se de reafirmar a história e nutrir a esperança da perspectiva coletiva de universidade.

     Neste sentido, uma UNIVERSIDADE PÚBLICA E SOCIALMENTE REFERENCIADA deve estar em sintonia com a sociedade civil, entendendo a sua complexidade e as suas contradições. A Universidade deve ir além do fato de discutir e tomar a sociedade enquanto objeto (de pesquisa ou reflexão). Uma Universidade democrática é aquela que abre espaços concretos de ação, é permeada pelos desejos e práticas dos seus segmentos (estudantes, técnicos/as, docentes) e daqueles da própria sociedade civil (associações, entidades, organizações e movimentos sociais etc.).

     Com esse Primeiro Manifesto buscamos abrir um diálogo com a comunidade acadêmica e partilhar nossa crítica a respeito de um projeto institucional em curso. Apresentamos ideias iniciais de uma universidade que acreditamos ser orientada por valores republicanos, democráticos, sociais e éticos.

Convidamos todos os segmentos para construir um projeto de candidatura à reitoria da UFPE, comprometido com os princípios elaborados coletivamente neste manifesto. Com este propósito, apresentamos Daniel Rodrigues1 (CE) e Bianca Queiroga2 (CCS) como pré-candidato e pré-candidata a reitor e a vice-reitora da UFPE.

Coletivo UNIVERSIDADE PÚBLICA EM MOVIMENTO!



1 Daniel Rodrigues é Doutor em Educação (UFSCar) e professor do Departamento de Fundamentos Sócio- Filosóficos da Educação/CE/UFPE. Atualmente é Diretor do Centro de Educação.

2 Bianca A. M. de Queiroga é Doutora em Psicologia Cognitiva pela UFPE e Professora do Departamento de Fonoaudiologia/ CCS/ UFPE. Hoje está na Presidência do Conselho Federal de Fonoaudiologia e é docente do Programa de Pós Graduação em Saúde da Criança e do adolescente, CCS.