terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A Universidade como “problema de gestão”



Flavio Brayner
Professor Titular da UFPE

Ninguém, em sã consciência e boa fé, defenderia uma instituição mal gerida, desperdiçando recursos financeiros e humanos, deixando de prestar os serviços a que se destina, sem oferecer as condições mínimas de funcionamento, burocratizada e intransparente. O problema não se situa na defesa de uma administração eficiente e eficaz: está em considerar as instituições como um “problema de gestão”.

À primeira vista somos conduzidos a pensar, quando usamos o termo, na racionalização de processos, em planejamentos estratégicos, em resultados mensuráveis, em indicadores, em avaliações institucionais, em monitoramento de ações, etc., e perdemos de vista o fato de que entender a universidade como um problema de gestão faz parte da mesma estratégia ideológica sutil e pouco perceptível, que trataremos a seguir. 

Tenho perfeita consciência, no entanto, de que a “denúncia” de uma estratégia ideológica, quer dizer, a ideia de que alguém tenta nos esconder algo da realidade ou de que a crítica ideológica - a noção de que nossa razão pode se interpor entre o ideal desejável e o real condenável- nos forneceria munição emancipatória, talvez tenha algo de ingênuo: a época “cínica” em que vivemos é aquela que transformou o “Vocês não sabem o que fazem!” (que a crítica ideológica tentava “conscientizar”) no “Vocês sabem o que fazem e continuam fazendo!”. O que significa que decifrar o enigma ideológico do “problema de gestão” não salvará Tebas! Mas, tentemos, ao menos como exercício de autoesclarecimento...

Chamo de “gestionarismo” este componente da Teoria Sistêmica, um conceito aplicável à organização empresarial, onde a entrada (ou insumos) é a força ou impulso de arranque ou de partida do sistema que fornece o material, energia ou informação para sua operação. Saída, produto ou resultado é o fenômeno que supostamente produz mudanças, ou seja, é o mecanismo de conversão de entradas e saídas. O processador –ou gestão- caracteriza a ação dos sistemas e define-se pela totalidade dos elementos empenhados na produção de um resultado. Esta concepção supõe que todas as instituições e, na verdade, toda a sociedade não passa de um sistema (de articulações autônomas e interdependentes), onde se pode calcular a entrada de insumos, submetê-los a um processamento técnico e prever a saída, o resultado. No limite, trata-se de um antigo projeto de fazer do “social” (portanto desta imponderável e imprevisível teia de relações historicamente constituída) algo administrável.  

O pano de fundo do “processamento” ou gestionarismo é o de que existe um método “universal” aplicável aos casos particulares, e todo caso particular pode ser enquadrado nesse universal, não importando se se trata de coisas ou pessoas, todos compreendidos como “insumos” ou “produtos” e, assim, nada deve escapar ao olho vigilante da gestão, que “prevê para prover” (divisa positivista): estamos no Reino da Equivalência Geral! Que engenheiros, médicos, auditores do tribunal de contas ou economistas possam se tornar administradores de sistemas públicos de ensino, por exemplo, sem jamais terem lido uma única linha sobre educação, isto deixou de ser um problema. Aliás, o problema está em deixar educadores gerirem a educação! Educadores “banhados em ideologias ultrapassadas e engessadas”, mais tendentes a seguir “éticas de convicção” do que de “responsabilidade” (M. Weber) e, claro, produzindo “resultados” pífios.

O gestionarismo, como ideologia do social administrável, é a forma de impedir a emergência do imprevisível, da imaginação social instituinte e, por fim, uma forma de bloquear a novidade histórica. Aqui é necessário não confundir a “inovação” (em geral restrita à tecnologia e à gestão, característica da modernização reacionária e da sociedade do consumo imediato) com o “novo” (o não pensado, o insólito, o inaudito), o que significa dizer que aliar quebra de paradigma e gestionarismo representa uma... contraditio in termini.

Tratando tudo como problema de gestão, onde todos os sistemas se equivalem porque podem ser administrados segundo uma Razão Gestionária Universal, é a diversidade, a pluralidade (de culturas, de ideias, de visões, de concepções de vida) que se vê submetida ao Império do Mesmo. O gestionarismo é o nome do medo que temos da emergência do diferente, do inaudito, do inesperado. É a solução técnica para conter a ameaça da incerteza que toda democracia comporta.

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